sábado, 9 de setembro de 2023

ARTE E ETERNIDADE EM JOSEPHIN PÉLADAN

  

ARTE E ETERNIDADE EM JOSEPHIN PÉLADAN*

 Que o espiritualismo seja verdadeiro ou falso, que a alma seja imortal ou não, que a religião seja a expressão da verdade ou somente um sonho, a arte vive de espiritualidade: e as aspirações de eternidade serão sempre as únicas musas.

                                        

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O Sr. Curie não tem nenhuma necessidade de teologia para constatar o fenômeno de radiação que justifica a doutrina espiritualista e, ao provar a unidade da matéria, traz uma surpreendente confirmação da unidade de Deus. Diante de seus aparelhos, ele pode ser materialista, sem que isso prejudique suas descobertas.

O artista, ao contrário, condena-se à esterilidade ao aplicar à sua busca uma fórmula de laboratório. O que ele constata não significa nada: os elementos que lhe fornece a natureza devem atravessar estados sucessivos para se cristalizarem em beleza; o alambique aqui é seu próprio cérebro. Como o modelo, análogo ao carbono, vai-se sublimar em diamante? A que temperaturas de alma será preciso submeter o sombrio mineral para conduzi-lo ao estado luminoso e radiante? Segredo verdadeiramente impenetrável, segredo quase divino essa transformação da forma atual em forma imortal!

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Esteticamente, não há sucessão. Após o gênio vem a mediocridade e, para dizer a verdade, não há escolas, há homens mais ou menos divinos e outros homens aplicados que os seguem.

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A arte da França morre porque ninguém ama a beleza como São Francisco amou a pobreza; perdidamente.

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A história da arte é a história de alguns indivíduos.

Entre eles, colocam-se cinquenta nomes que não valem senão como diminutivos do seu nome! Esses cinquenta servem de escala para medir os gigantes, dos quais, sem eles, não conheceríamos a verdadeira estatura. Natura non facit saltus. Antes e depois do gênio, não se prosterna, mas ainda se admira.

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O privilégio do homem é penetrar pelo pensamento até às essências que o olho interno descobre sozinho, e até à fonte de todas as essências, o Ser infinito ou o Belo absoluto. Manifestá-lo nas formas dele emanadas e que o refletem, tal é o objeto da arte, seu objetivo magnífico.

Lamennais diz acertadamente. A obra de arte digna desse nome tende a encontrar a substância ou forma expressiva da essência. A arte opera por encarnação.

Quando o venerável Ingres nos mostra Joana d’Arc armada exatamente conforme a moda das armas em 17 de julho de 1429, ele não faz nada de bom nem de mau. A essência de seu tema é outra. Qual é a forma essencial de uma donzela inspirada, que, depois de levar seu país à vitória em nome de Jesus rei do céu, será queimada aos dezenove anos?

Estandarte, espada, armaduras, acessórios sem interesse. Joana d’Arc é uma ideia: qual é o corpo dessa ideia, a face dessa ideia? Ela é uma jovem e faz ato de homem; ela é do sexo de seu ato? Não. É somente uma donzela? Também não. Será São Jorge? Tampouco. Um anjo? Não.

Não posso enumerar a sucessão de imagens pelas quais o artista chegará a conceber a boa Lorena; mas afirmo que se trata de desenhar um rosto, depois um corpo, de encontrar enfim um gesto e que o problema é puramente expressivo e plástico.

O Moisés de Miguel Ângelo desorienta nossas noções preconcebidas. Ninguém explicará satisfatoriamente essa obra, tão bizarra em sua roupagem, e, no entanto, ninguém hesitará em reconhecer o personagem.

Os ortodoxos não gostam do Moisés, acham revoltantes os nus da capela dos Médicis e os denominam “o caos e a matéria, o orgulho e a volúpia que a Renascença parece ter querido glorificar”.

Já indiquei o quanto a sacristia calunia o ardente espiritualismo da Renascença.

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O personagem da arte difere do personagem vivo como o ator em cena difere do homem privado. A moldura ou o pedestal separa este mundo do mundo da ficção, como uma rampa.

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O que constitui a beleza de uma estátua é exatamente o que separa a obra do modelo; e essa distância se dá primeiramente entre o homem geral ou serial e o indivíduo; em seguida entre o homem serial e o personagem representado; enfim, entre o personagem e a ideia maior que ele simboliza. Suponhamos que se trate de uma estátua de Prometeu, sua forma será bela, animalmente; além disso, ela será um pouco colossal, já que ele é um demônio entre o efêmero e o olímpico; enfim, será preciso que ela responda à audácia que roubou o fogo, à caridade que o deu, e sobretudo à vontade que o suplício do Cáucaso não pôde esgotar.

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O diagnóstico médico não traz nenhum esclarecimento para o crítico. Miguel Ângelo era muito bilioso, grande descoberta! Torregiani lhe esmagou o nariz, e o que isso contribui para explicar o teto da Capela Sistina?

O gênio trabalha apesar da doença e não por causa dela. Bazzi (1) mereceu seu cognome? O que isso importa para O êxtase de Santa Catarina e para O casamento de Alexandre e Roxana?

Aqueles que viveram na intimidade dos homens de gênio conhecem suas manias, seus tiques, e sabem que isso são acidentes, sem relação com suas obras.

A faculdade criadora, desde que ela exista, domina o ser inteiramente; ela mantém aqueles que a possuem em estado de perpétua gestação.

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A ciência oferece verdadeiramente uma sequência adicional que coloca o que veio por último na posse de todo o adquirido pelos que lhe precederam: o mais fraco naturalista assimila as descobertas de Lavoisier e de Bertholet e, a não ser em seus métodos, a ciência não parece poder retroagir.

A arte, ao contrário, se encarna, vive e morre em cada gênio. Giotto é toda uma arte, e Rafael, por mais perfeito que seja, não possui as qualidades do trecentista.

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A beleza é única em seus caracteres essenciais. A mesma busca leva ao mesmo resultado.

As obras-primas têm entre si um ar de família e esse ar constitui a quintessência da arte. Com a gama musical, Palestrina tudo exprimiu, assim como Wagner. Com a forma humana, desde a Esfinge colocada no limiar do deserto até o São João, desde a deusa de Tebas até a Madona, tudo foi dito.

O Cristus Judex de Miguel Ângelo com a barba seria o Zeus tonitruante, como os personagens da Disputa do Santo-Sacramento poderiam se tornar gregos e os da Escola de Atenas cristãos. O São João a meio corpo não seria uma esfinge com braços?

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Peço perdão à Universidade atual, a qualidade que faz uma obra-prima de um pote, materialmente semelhante a um outro, essa inflexão de linha, essa inefável modulação do contorno que nenhuma regra exprime e que em suma não existe senão pelo divino acaso da inspiração é imaterial como a alma que a percebe.

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Nem as particularidades locais e momentâneas da civilização, nem os traços animais e coletivos da humanidade possibilitam a beleza. Para compreender uma obra esteticamente, é preciso esquecer a vida do artista e da época. Se Leonardo tivesse querido nos informar sobre Louis Le More (2), e Rafael sobre Leão X, eles teriam pintado diferentemente.

Esses mestres não eram cronistas e não se propunham de forma alguma a fornecer documentos aos historiadores; eles viam um mundo ideal que nunca existiu senão em seus espíritos e pintaram suas visões. O artista pertence a seu tempo tão somente pela natureza de suas visões, que participam, não do pensamento geral, mas dessa minoria intelectual que é sempre a elite. Rafael fez sua obra-prima com a Escola de Atenas, porque o humanismo foi o verdadeiro misticismo da Renascença.

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A Beleza opera por meio da volúpia. Uma obra-prima aumenta em nós a vida da graça, espelho magnífico que ilumina e dilata nossa personalidade. Primeiramente, a Beleza nos dissuade de toda vulgaridade, ela nos inculca a ideia de perfeição e harmonia. A Beleza é o mistério para os olhos, ela é o verdadeiro tornado sensível, ela é o bem visível, ela é o rosto de Deus.

Nós vivemos intelectualmente de mistério como Fausto, nós vivemos animicamente de aspirações à felicidade e à justiça como Prometeu; e a arte, criada pela religião, torna-se a nova religião para os homens que cessam de crer sem cessar de ser homens e de sentir.

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* * Textos selecionados e traduzidos de L’esthétique idéaliste, in: PÉLADAN, Joséphin. “Les deux esthétiques – Théorie de la beauté”. Casimiro livres, 2022. Tradução: Anderson Fortes de Almeida.


Notas do tradutor:

1) trata-se do pintor italiano Giovanni Antonio Bazzi (1477 – 1549), cognominado Il Sodoma (O Sodoma) segundo Giorgio Vasari em sua obra As Vidas dos Melhores Pintores, Escultores e Arquitetos, publicada em 1568.

2) Ludovico Maria Sforza (1452 – 1508), cognominado Il Moro (O Mouro), regente do ducado de Milão e mecenas de Leonardo da Vinci, a quem encomendou o afresco conhecido como A Santa Ceia ou A Ceia do Senhor (em italiano: L’Ultima Cena) para o convento dominicano de Santa Maria delle Grazie.

 

 

domingo, 25 de junho de 2023

AS BÊNÇÃOS DA MORTE

 

AS BÊNÇÃOS DA MORTE*

                                            Por Paul Sedir**

                                                                  “LÁZARO, NOSSO AMIGO, DORME, MAS VOU DESPERTÁ-LO.”

                                                                                     (João, 11: 11)

Se somos, de fato, espiritualistas, se conformamos nossos atos a nossas crenças, a Rainha dos assombros perde a nossos olhos seu prestígio de pavor e seu halo de mistério. Ela se torna a libertação, o passo à frente, a entrada em um mundo novo. Vemos então chegar a ceifadora com toda serenidade; acolhemos com um sorriso sua visita inevitável; pois é de Deus que ela obtém seu poder, e sua força é uma das formas da força do Verbo. O medo que os homens sentem à sua aproximação, se nenhuma embriaguez os subtrai a si próprios, é completamente físico e tem sua origem na inércia da matéria. Os velhos sofrem mais desse medo do que os jovens porque os espíritos corporais, habituados a este mundo, a esta luz, a esta atmosfera, aos objetos familiares, temem perder toda essa vizinhança que lhes é habitual, apreendem o desconhecido que pressentem e se agarram desesperadamente a essa obscura casca que é sua casa. Mas o Eu conserva, em geral, mais calma, e as últimas contrações, que impressionam dolorosamente os espectadores da agonia, não são, na sua maior parte, senão automatismos totalmente físicos.

Os fenômenos da morte são, por assim dizer, desconhecidos. Uma tal afirmação parecerá, sem dúvida, excessiva a pesquisadores como vocês, senhores, que têm familiaridade com os ensinamentos das religiões e com os mistérios das iniciações. Eis o que quero dizer. O lugar onde se efetua a partida das almas é oculto; o ar do país dos mortos é malsão aos vivos. Certos pesquisadores obstinados bem que puderam dele se aproximar e perceber alguma coisa através de uma fenda no muro enquanto os guardiões estavam de costas; mas o que eles viram é incompleto; eles apreenderam somente alguns detalhes isolados, uma silhueta em meio à multidão, uma sílaba entre mil palavras. Apesar disso, o pequeno informe parcial, incompleto, lhes bastou para construir um desses sistemas admiráveis de onde tantos povos extraíram a coragem de morrer, o heroísmo mais difícil de viver, e que nós estudamos ainda hoje com um espanto respeitoso.

Não quero incitá-los ao desdém com respeito a esses velhos rishis, esses patriarcas, esses hierofantes cujo grande labor impõe a consideração; entendam somente que a descrição exata e completa da morte não está escrita em lugar algum. Dizem que as provas dos mistérios antigos consistiam na passagem consciente do neófito através das Portas tenebrosas; sim, o iniciado conhece a morte como se conhece uma cidade à visão de uma fotografia. Somente pode falar sobre o que se passa no reino das sombras aquele que entrou pela porta; e somente entra com legitimidade aquele que recebeu a chave da vida; esse é o homem livre. Vocês só escutarão, portanto, esta noite, noções totalmente elementares, embora eu creia que elas sejam exatas. Não lhes peço, aliás, para aceitá-las sem controle, muito pelo contrário; e isso é possível, já que tudo é verificável a quem peça ao Cristo que lhe instrua diretamente.

     

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Há diferentes espécies de morte já que são incontáveis as formas da vida e já que estas se sucedem, se substituem e se transformam todas mutuamente. Quanto aos homens, pode-se distinguir as mortes interiores, espirituais, psíquicas, e as mortes exteriores, fisiológicas. As “noites” do misticismo católico são mortes; uma iniciação, um batismo comportam uma morte prévia, pois são renascimentos. Mas quanto à morte corporal, ela consiste unicamente na partida do espírito.

Assim, certos indivíduos vão e vêm, exercem sua profissão, em uma palavra, parecem viver, mas seu espírito já deixou o corpo há muito tempo; é a vida inteligente da matéria que continua a fazer a máquina funcionar. E quando chegar a morte física, quando o espírito corporal, por sua vez, se for, somente seus pais e seus amigos serão afetados, seu Eu dificilmente se dará conta.

Existem outros casos menos extraordinários nos quais o espírito de um homem vivo é em parte exteriorizado no invisível à procura de um ser que ele quer encontrar. Esse deslocamento, que pode produzir-se anos antes da morte, não tem outros efeitos senão uma fraqueza física e mental mais aparente do que no caso precedente, pois o sistema nervoso vegetativo não pode retomar sua autonomia enquanto o espírito só se afastar parcialmente. De fato, é sobretudo o espírito que causa fadiga nos invólucros, físicos e outros, dos quais ele se serve para agir. Vê-se frequentemente um grande vigor corporal nos seres fracos de inteligência ou privados de razão.

           

Quando a hora da partida se aproxima, o anjo da morte – Azraël, o denominavam os Kabalistas, Yama, dizem os brâmanes – desce até o quarto fúnebre. Para dizer a verdade, ele próprio não vem; o taciturno mensageiro só aparece aos raros homens suficientemente intrépidos para afrontar o brilho de diamante de seus olhos que nunca se fecham, aos seres cujas movimentações revolucionam o mundo, aos desconhecidos misteriosos cujo olhar pousou sobre as magnificências mal entrevistas da eterna Luz. Em geral, é um gênio subalterno que se dirige à cabeceira do moribundo. A seguir, dois outros espíritos se apresentam que apontam o bem e o mal que ele fez em pensamentos, palavras e atos; enfim chegam todas as criaturas para com as quais esse homem foi bom ou mau; todas estão lá, desde o seixo até o deus, as folhas da relva, os animais, os humanos vivos e mortos, os invisíveis, todos prontos a testemunhar ou a clamar por justiça.





É por isso que a agonia dos maus é tão penosa. O espírito se sobressalta, sobretudo em suas regiões corporais; ele corre desesperado por todos os cantos do corpo buscando ajuda; e, infelizmente, o amor daqueles que ficaram é por demais pessoal e utilitário, em muitos casos, para lhe oferecer o consolo de que ele tem necessidade. O moribundo só pode ser ajudado por uma força mais calma e mais alta; ele a encontra, geralmente, nos auxílios prestados pela religião.

Um dos efeitos notáveis das cerimônias religiosas é justamente o de lançar uma ponte entre um determinado canto do visível e um determinado círculo do invisível. Todas as religiões prescrevem ritos funerários; e se tivéssemos o tempo de analisar esses numerosos códigos, juntaríamos muito rapidamente uma pilha de documentos muito curiosos. Mas como separar o verdadeiro do falso?

       

Ao invés de estudar os usos de povos diferentes de nós pela época, pela distância, pela mentalidade e pela natureza de sua evolução, habituados a esforços que a dissemelhança dos meios invisíveis nos tornaria impossíveis, olhemos o que está ao nosso alcance, o que está combinado para nós, para nosso país, para nossos tempos e para os homens de nossa raça. Gostaria de lembrá-los dos ritos do sacramento católico da Extrema-unção, de tentar extrair deles o sentido e perceber seus efeitos sobre o pobre espírito desorientado, rejeitado pela prisão deste corpo  à qual ele acabara por se habituar tão comodamente.

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 Ao entrar, o padre invoca primeiramente a paz sobre a casa e sobre seus habitantes; depois ele dá o crucifixo ao doente para ele o beijar e recita sobre ele a fórmula conhecida de mundificação: “Asperges me, Domine etc.” Se for possível, ele o confessa, e lhe dirige algumas palavras de exortação. O versículo iniciático: “O Senhor esteja convosco e com o vosso espírito” abre uma longa súplica a Jesus-Cristo para a felicidade, a alegria, a saúde, a ajuda dos anjos, o afastamento dos demônios e a santificação. A seguir, uma outra fórmula pede ao Pai o envio de anjos protetores. Recita-se então os sete salmos da penitência, cujo nome indica suficientemente o uso, e as litanias correspondentes. Aqui o padre, por meio de três sinais da cruz, e impondo as mãos, expulsa as forças diabólicas do doente em nome da Trindade e com a ajuda dos santos. Ele mergulha o polegar no óleo santo e unge em cruz os olhos, as orelhas, o nariz, a boca, as mãos, os pés, os rins, invocando sobre a função de cada uma dessas partes do corpo a misericórdia do Senhor. Seguem o Pater, seis responsórios para o socorro divino, e três Oremus, que pedem a saúde interior e exterior.


Na agonia, se o moribundo não puder falar, o padre se coloca no lugar dele e ora em voz alta em seu nome. Essas preces compreendem, entre outras fórmulas, litanias especiais que invocam o socorro do Cristo pelas circunstâncias análogas de Sua vida: Sua paixão, Sua morte, Seu sepultamento, Sua ressureição, Sua ascensão. Depois uma espécie de comando é dada à alma do paciente em nome das pessoas divinas, dos anjos e dos santos para partir deste mundo rumo a um lugar de Paz, um pedido à clemência do Pai, quatro outras orações reiteram esse pedido com apoio nos fatos análogos da história santa e da história da Igreja; depois recitam-se os capítulos XVII e XVIII de João; enfim salmos e três outras objurgações ao Cristo pelos méritos de Sua agonia.

Assim que a morte se aproxima, o padre invoca, em voz alta, próximo à orelha do moribundo, Jesus e Maria, implorando-lhes para receber este espírito, dar-lhe o repouso e ser misericordiosos para com ele.

Vejam, a administração do último sacramento comporta três fases. Uma preparatória, na qual se purifica o lugar e o indivíduo; uma segunda, evocatória, se ouso dizer, na qual o padre evoca Jesus, os anjos e os santos; a ponte é lançada do alto até aqui embaixo. Em terceiro lugar vem o sacramento propriamente dito, que consiste em uma magnetização superior. Enfim, o padre se volta para Deus, recapitula seus pedidos e  faz deles como que um feixe, depois ele eleva seus agradecimentos, seu reconhecimento e sua confiança.

Um homem tem necessidade de uma certa força: é o doente; um outro homem possui a chave desse tesouro: é o padre. O primeiro permanece passivo; o que ele faz nada mais é do que se colocar, pela confissão e pelo arrependimento, em uma atitude moral de receptividade. O segundo o ajuda a tomar essa atitude e lança um fio de transmissão da força solicitada: é a prece; ele o prende no lugar mesmo onde ela nasce, isto é, Jesus; ele conta com a ajuda, para estendê-lo, de intermediários benévolos, os anjos e os santos; ele o fixa no polo negativo, o doente; a força passa e o operador faz com que ela seja absorvida pelo paciente. Depois, ele agradece os auxílios, e os devolve e os reenvia ordenadamente, ou seja, entre as mãos de Deus.

O procedimento pelo qual a Igreja assiste os agonizantes se resume nisto: um homem treinado a viver em espírito, pela contemplação, seguindo o caminho invisível de Jesus ­- o padre -, tenta por meio da prece elevar o espírito do doente que se debate e manter seu espírito desamparado neste mesmo caminho. Para isso ele utiliza a imagem luminosa e viva que cada um dos atos de Jesus deixou na atmosfera segunda; ele aplica o sofrimento corporal do Salvador ao sofrimento corporal do doente, a inquietude de Jesus à inquietude do doente, o poder psicúrgico de um certo antigo profeta ao desespero do doente; ele evoca os triunfos de Jesus: ressureição, ascensão, para tentar fazer o moribundo sentir algum conforto com sua presença invisível.

Assim, a Igreja reconhece uma teoria muito antiga de um meio plástico e vibrante onde se conservariam as imagens de todos os acontecimentos passados. Com efeito, na medida em que um protagonista de um ato qualquer encarna a Verdade nesse ato, a Vida desce para animá-lo, torna sua existência física fecunda e perpetua seu reflexo nessa “imaginação” da terra onde os videntes podem reencontrá-lo séculos mais tarde. Quando o realizador desse ato é perfeito e poderoso como Jesus, os reflexos se multiplicam e possuem uma energia particular, de modo que os homens que tendem para este modelo reencontram mais rapidamente essas imagens e delas se beneficiam mais profundamente.

Tal é, em linhas gerais, o arcano da virtude dos sacramentos. Eles atuam proporcionalmente à profundidade com a qual o fiel e o padre entram no lado oculto do ato crístico que é a sua raiz. A forma sacramental contém sempre duas forças: uma central, proveniente de Jesus, totalmente espiritual, mas assimilável conforme a fé prática do sacerdote e do recipiendário; uma exterior, fluidica, que não é senão a soma das vibrações acumuladas por todos aqueles que fizeram os mesmo gestos e pronunciaram as mesmas palavras. Para que a primeira dessas virtudes penetre a substância da alma e cure até mesmo o corpo, é preciso a santidade do pontífice, o humilde desejo ardente do devoto.

Mas voltemos ao nosso assunto.

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Para compreender o que se passa na morte, lembremo-nos de que no homem certas forças vêm da terra, outras vêm do cosmos, outras enfim vêm de Deus diretamente. A morte é tão-somente uma retomada, pela alma da terra, daquilo que ela nos emprestara no nascimento. Se o restituímos de bom grado, não sofremos. Se recusamos, haverá dilaceramentos inevitáveis, danos e lamentações até que o defunto compreenda a sabedoria de uma resignação confiante. As pessoas boas sofrem muito pouco; aqueles que, ao contrário, fizeram ídolos de si mesmos e de suas qualidades experimentam o vazio de suas glórias. O corpo, o duplo, os sentimentos, as funções mentais, a memória, a habilidade profissional, os gostos particulares, tudo isso é retomado pelos deuses terrestres para uma purificação, uma reparação, e para ser colocado em reserva em um lugar especial para que possa servir mais tarde, seja àquele que já o recebera em depósito, seja a alguém da mesma família espiritual. No que concerne ao corpo físico, a inumação é preferível à cremação. Eis por que: cada individualidade humana, uma vez que ela deve reger um dia uma parte da Natureza, recebe, entre outros trabalhos, uma porção determinada de matéria terrestre a evoluir, fazendo-lhe conhecer pela experiência o modo humano da vida. Um átomo de carbono, por exemplo, trabalha como mineral, depois como vegetal, depois como animal, segundo as diferentes qualidades da vida terrestre em cada um desses três reinos. Ele terminará o seu ciclo entrando em uma individualidade humana, seja pela alimentação, pela respiração ou qualquer outra porta funcional, seja por outras vias hiperfísicas.

Todo um sistema de canais e de fios é estabelecido para trazer a cada um de nós, de todos os cantos do mundo, as partículas materiais que nos são destinadas. Assim, quando entro na padaria, o padeiro me dá, dentre todos os seus pães, aquele mesmo cuja matéria primeira foi escolhida para mim dentre todos os campos de trigo e dentre todas as espigas. O mesmo acontece com tudo o que se incorpora na minha individualidade.

Ao nascer, cada homem recebe uma parte da massa total de substância terrestre que lhe é atribuída desde a origem e que deve retornar à terra, afinada pelo trabalho próprio da vitalidade humana. O quadrado de solo que receberá o cadáver é fixado, também ele, antes que se nasça. Os motivos que determinam o lugar da morte, o cemitério e a localização da tumba são apenas aparências. É assim que se vê imigrantes, que passaram toda sua existência longe, voltarem ao país natal somente para que seu corpo repouse lá onde o solicitam as repartições ocultas da matéria.

Ademais, cada homem está conectado magneticamente a minerais, plantas e animais. Eles nascem juntos e eles morrem juntos; não se deve dispersar o que Deus reuniu. Se, portanto, se queima o cadáver, além do fato de que a liberação dos elementos psíquicos é brutal e faz com que o duplo sofra e entre em pânico, uma quantidade enorme de partículas espirituais recebe uma morte violenta, e aquelas do solo, onde deveria ocorrer a inumação, esperam em vão o trabalho que esperavam e se veem privadas de uma evolução legítima e de uma recompensa: a luz própria da vitalidade humana que as células do cadáver deveriam lhes comunicar. Há dolo, entrave à atividade natural e desconforto em um pequeno canto do plano físico.

O embalsamamento deveria também ser evitado por motivos contrários. Ele retarda a evolução, ele imobiliza o duplo; ele impede o jogo normal do retorno das almas. Se o meu tempo não fosse contado, eu teria anedotas bem curiosas a contar sobre múmias egípcias.


  Certas providências poderiam ser tomadas quanto à inumação propriamente dita, à fabricação do caixão, à construção do sepulcro. Mas tudo está previsto por regulamentações administrativas; e, como não há leis injustas senão na aparência, nosso primeiro dever é o de nos submeter, ainda que tenhamos que sofrer um pouco.


É bom fechar os olhos do defunto: isso o separa do mundo; talvez, no momento de dar o último suspiro, ele tenha entrevisto algum espetáculo que nenhum indiscreto deve surpreender no fundo de suas pupilas doravante imóveis.

Os gênios de que falamos acompanham o cortejo fúnebre; outros seres também, predadores invisíveis e defensores; frequentemente esses últimos são cães, foi isso o que entreviram os bárbaros, que degolavam sobre o túmulo do chefe seus animais de estimação; foi isso o que viram perfeitamente os sacerdotes do Egito e da Índia. Mais do que se pensa, o cão é o amigo do homem.

O duplo flutua em torno do caixão e busca avidamente as emanações fluídicas dos incensamentos, das aspersões, dos gestos sacerdotais e das palavras rituais. É sempre útil mandar celebrar um serviço religioso, pelo menos dizer sobre o corpo alguma prece. O ritual católico do funeral é extremamente instrutivo para ser estudado.

Feita a inumação, o duplo permanece junto ao túmulo e o vigia, a menos que um poderoso interesse o chame a uma outra parte. É assim que os fantasmas das vítimas assombram os lugares em que elas perderam a vida, que o avarento guarda seu tesouro, e o inventor, às vezes, suas fórmulas. Mas tais manifestações, sobretudo quando elas apresentam um caráter de horror ou de desordem, provêm principalmente de seres que não fizeram o bem, que acreditaram somente na matéria, ou que não aprenderam a resignação. E suas inquietudes no Além começam sua purificação. E por pouco que vocês tenham percorrido coletâneas de fatos psíquicos, vocês sabem que esses fenômenos são frequentes. Eu poderia lhes contar um grande número dos quais fui testemunha; vou citar para vocês apenas um, que lhes mostrará como o duplo permanece algumas vezes séculos preso à matéria.

Trata-se de um buscador de tesouros que conheci antigamente e que morava em La Plata. Ele operava por meio da magia e com a ajuda de uma sonâmbula. Ele soube da existência de subterrâneos debaixo de um estabelecimento religioso abandonado e enviou sua sonâmbula à descoberta. Ela lhe desenhou um mapa desses porões e lhe afirmou que em uma delas se encontrava um tesouro lá depositado desde o fim do século XVII. Nosso homem fez seus preparativos e, numa bela noite, foi com sua vidente até essas ruínas. Ele encontra a entrada dos subterrâneos, acende uma lanterna, adentra os corredores, guiado pela sonâmbula adormecida. Em um dado momento, esta solta uma exclamação de pavor; diante dela um padre, diz ela, pertencente a uma certa ordem reconhecível pela forma particular de seu cabelo, lhe faz gestos de ameaça. O magnetizador lhe ordena que avance assim mesmo; a infeliz dá alguns passos tremendo e, de súbito, cai com um grande grito: “Ele me matou”. E ela morreu instantaneamente. O que foi o retorno do nosso mago, nas trevas, a duas léguas da cidade, com um cadáver nos braços, vocês imaginam. Ele nunca mais tentou descobrir um tesouro.

Na imensa maioria dos óbitos, o espírito se afasta ao fim de alguns dias. Logo após o último suspiro, com efeito, o julgamento acontece. Tal como eu lhes dizia ainda há pouco, uma assistência invisível numerosa se comprime em volta do leito funerário. Dois desses gênios conduzem durante três dias o espírito do defunto a todos os lugares onde ele viveu e o colocam diante de todas as criaturas com as quais ele se relacionou e de todas aquelas que ele teria conhecido se ele tivesse sempre cumprido totalmente o seu dever. Essa viagem termina diante do tribunal onde tem assento o Juiz, nosso Jesus. Frequentemente, Ele está só, às vezes estão ao seu lado o Senhor da Terra e a Virgem Maria. Diante dessas presenças muito puras, mas que encobrem o seu brilho conforme a fraqueza dos olhos que as contemplam, o espírito desencarnado percebe suas faltas como em um espelho; ele se confessa espontaneamente; todas as mentiras vêm à luz e os crimes escondidos são descobertos. Com frequência, o remorso e o arrependimento são tais que o espírito cobra de si mesmo a expiação.

Além disso, há um acusador, o anjo mau, e um defensor, o anjo guardião, e, com ele, a Virgem, que coloca na balança sua poderosa intercessão. Em todo caso, a sentença é sempre amenizada; a Misericórdia triunfa sobre a Justiça.

É o espírito por inteiro que passa por esse julgamento: o inconsciente e o consciente, fluidos, mental e psiquismo, uma vez que cada uma dessas entidades componentes possui livre arbítrio. Dada a sentença, elas retornam respectivamente à região terrestre de onde saíram.

A memória e a inteligência não seguem o eu; elas permanecem aqui; não se pode, pois, lembrar de encarnações anteriores, e as paramnésias não vêm nem do cérebro, nem do intelecto, mas do espírito.

Esse último se dirige ao lugar onde reside o ideal que ele adorou por seus atos, suas inquietudes e seus desejos. O espírito do pintor vai a um planeta de luz; o espírito do músico a um planeta de harmonia; o do mentiroso a um lugar onde tudo é engano. Cada paraíso, cada inferno, que as diversas religiões descrevem, existe objetivamente. O espírito do velho guerreiro escandinavo subia até um Walhalla; o espírito do católico fervoroso repousa em uma atmosfera de doçura, de entusiasmo e de reconhecimento; o espírito do falso adepto é acorrentado em um espaço imóvel e vazio. Numa palavra, cada um experimenta a realização de suas mais caras esperanças.  

              

É, portanto, exato que, se nos mostramos bons filhos, bons esposos, bons pais, bons amigos, reencontraremos do outro lado nossos ancestrais, as pessoas que amamos, nossos amigos, mesmo aqueles que tínhamos perdido de vista há muito tempo. Mas, se quisermos evitar desilusões ou surpresas do outro lado, não se deve esquecer que, em nossas simpatias e nossas antipatias terrestres, as forças da carne e do sangue contam muito e que, cessando sua influência por causa da morte, pode acontecer que um ser adorado se torne logo indiferente ou um inimigo, simpático. Às vezes, também, devo reconhecer, quando nossos sentimentos são puros, a separação os exalta, os sublima e os conduz até as imortais claridades do Amor verdadeiro, daquele que a cada sacrifício aumenta o esplendor.

Tudo se equilibra no cosmos. As mortes e os nascimentos se equilibram; aquele que desaparece da Terra, seu espírito vai, digamos assim, animar imediatamente um outro corpo em um outro planeta. Lá tudo está pronto para recebê-lo, pais o esperam, e amigos, e guias, como no momento em que ele nasceu aqui na Terra.

Enquanto esperamos a ressureição definitiva no Reino de Deus, a morte nos proporciona uma ressureição imediata. Não precisamos nos inquietar com nada, nem temer o que quer que seja: todos os detalhes desses deslocamentos estão previstos e regulados com a mais minuciosa solicitude. A única preocupação do Pai é a de nos fornecer todos os meios para viver, para aprender e para trabalhar.

O período de transtornos cessa tão logo a alma se desprende de seus ídolos terrestres e se resigna. Ela entra então no gozo sereno de seu Ideal. No entanto, duas categorias de ser não conhecem o repouso do outro lado. São primeiramente os maus e aqueles que não quiseram trabalhar em si mesmos enquanto estavam na Terra. Em segundo lugar, são os soldados do Céu. Esses, na verdade, não trabalham para se aperfeiçoarem nem para ganharem o Céu. Eles estão seguros de que verão a Deus um dia. Para eles é indiferente tornarem-se ricos, célebres, poderosos, no físico ou no moral; é a vontade do Pai que lhes interessa. Eles sofrem somente pelos outros, jamais por eles mesmos; o que eles buscam é oferecer aos outros verdadeira alegria. Eles esquecem de si mesmos, não pensam em suas fadigas e, se ganham uma recompensa, não a guardam, dando seus méritos a seus irmãos menos avançados.

Entretanto, quanto aos homens ordinários, estes repousam, mas não por muito tempo. É muito raro que o intervalo entre duas encarnações terrestres atinja mil anos; quanto mais a raça à qual se pertence se aproxima de seu fim; quanto mais o próprio indivíduo for evoluído, mais frequentemente voltam as encarnações. Até existe aqui na Terra um homem que não faz outra coisa senão passar sem interrupção de um corpo usado a um corpo novo; seu espírito nunca teve o tempo de ir até o país dos mortos. A lenda judia de Elias, a lenda cristã de João Evangelista, a lenda muçulmana de “El Khadir” provêm de uma intuição desse fato. Esse homem, verdadeiro Ahasvérus do invisível, é a sementinha imperceptível que prepara o futuro longínquo quando nosso planeta entrará na alegria do Senhor.

É sobre esta Terra que se trabalha com mais resultado. Chegar a uma idade avançada é, pois, um favor. Em nenhum caso tem-se o direito de se dar a morte; o suicídio é um cálculo muito ruim. O espírito passa do outro lado por todos os sofrimentos aos quais ele queria escapar e, além disso, é preciso que ele realize trabalhos suplementares para reparar todas as desordens que seu ato intempestivo determina em torno dele. No entanto, não culpem os suicidas; ninguém conhece os verdadeiros motivos de um ato; e, às vezes, o suicídio é, por assim dizer, fatal.

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Qual deve ser nossa conduta para com as almas dos mortos? De um modo geral, não temos que nos ocupar dos mortos; não temos deveres para com eles. Não nos é proibido pensar neles, continuar a lhes querer bem, lamentá-los; mas não se deve fazê-los voltar, nem pela magia, nem pelos meios mais simples do espiritismo. Se nós somos bons, se eles foram bons, eles voltam por si mesmos, ou melhor, eles não nos deixam.

Em todas as famílias patriarcais, os ancestrais estão presentes em torno do lar; eles assistem seus descendentes e oram por eles, se eles souberam orar na Terra. Aliás, ancestrais, pais e filhos são um só grupo compacto. Se eles se separam segundo o corpo, eles permanecem juntos segundo o espírito, com a condição de que eles todos pratiquem a virtude. O bem reúne, aproxima, harmoniza sempre. O mal, mesmo quando é o mesmo gênero de mal que vários seres cometem, sempre desune e dispersa. As manifestações psíquicas provocadas, quando elas não são produzidas nem por larvas, nem por espíritos de animais, são o feito do duplo, do astral do defunto; quase nunca o eu imortal participa disso. Assim nós estamos na mão de Deus; Ele dispõe de nós à Sua vontade, mas sempre para o nosso aperfeiçoamento. Ele não permite a ninguém deixar o trabalho antes da hora; Ele não permite a nenhum deus espoliar quem quer que seja. O Pai cuida de todos; quando um ser bem-amado nos deixa, simpatias novas o cercam; ele tem guias, ele tem ajudas; e, aonde seu justo destino o levar, é para o seu aperfeiçoamento. Lutem, pois, contra a revolta e contra o desespero. Nossos gemidos prendem nossos mortos à Terra. Deixemo-los partir; eles voltarão; eles voltam mesmo frequentemente de uma maneira muito material. Pois se o bisavô sorri com uma ternura tão profunda a seu bisneto, é porque seus espíritos se reencontram e relembram os anos passados, quando talvez eles tenham sofrido juntos e foram felizes juntos. Mas respeitemos o véu que a Bondade divina lançou felizmente sobre o mistério das existências.

O espiritismo, portanto, para aquele que acredita em Deus, é, no mínimo, inútil. Aliás os espíritos não sabem nada mais do que nós sobre os segredos do universo; eles podem muito bem nos ouvir espontaneamente em caso de urgência. Obedeçamos à palavra do Cristo: “Deixem os mortos sepultar os mortos”. Eles têm anjos que se ocupam deles, lá onde estão, como tinham quando habitavam a Terra. Quanto ao inferno, nenhum ser permanece lá para sempre. O próprio Príncipe do inferno chegará um dia ao arrependimento. E se estivermos preocupados em melhorar a sorte de nossos defuntos, o único procedimento eficaz e normal é o de se entregar com mais fervor à prática da virtude. Do coração do discípulo a Luz se irradia sobre todos os seres aos quais ele se assemelha. Nós formamos famílias, e os membros de cada família permanecem juntos, em espírito, com a condição de que eles se unam pelo amor do mesmo Mestre. E esse amor, creiam, é o único que nada macula e sobre o qual podemos fundar as mais firmes esperanças. Poucos homens o conhecem, mas, a crer nesses privilegiados, nenhum encantamento se aproxima de suas delícias sobrenaturais.

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Assim, a morte é doce para aquele que ama a Deus acima de tudo. Ainda que ele busque longe, nas criptas do esoterismo, elixires e fórmulas para prolongar sua existência, ele tampouco deseja apressar a visita daquela que só o Cristo soube vencer. Sua alegria não é morar aqui ou em outra parte, mas fazer a vontade de seu Mestre. Se vocês soubessem em que beatitude nos lança a menor palavra, a simples presença do Amigo, todos os desertos perderiam seu horror, e todos os infernos, sua desolação. Ora, Jesus mora em nosso coração, de preferência a qualquer outro lugar, a menos se nós nos opusermos à Sua visita.

Que esplêndidas recompensas serão nossas mais tarde! E com que suavidades o Céu interrompe os trabalhos de Seus soldados! Por eles, a morte se despoja de seus terrores, anjos vêm à sua cabeceira, eles os guardam, eles afastam os seres hostis de seus corpos, eles os envolvem em véus, eles os cobrem com suas asas, eles os carregam em seus braços, acima dos abismos, através dos turbilhões, e eles os depositam, adormecidos em um leve sono, sobre os degraus do trono onde se assenta Aquele que eles amam. Não, em verdade, o soldado não pode temer nada de tudo o que se agita entre os limites da criação. Mas eu não gostaria que vocês se pusessem a trabalhar na esperança de uma recompensa; é rumo à única alegria inefável do Espírito que eu desejo vê-los caminhar.

Aquele que doma suas paixões e mantém esses corcéis fogosos na trilha do bem recebe como recompensa tornar-se realmente o senhor delas. Aquele que venceu demônios, o Céu os dá a ele a seguir como servidores, quando eles melhoraram por seus cuidados. Mas quando trabalhamos por qualquer vantagem que seja, estamos no egoísmo e não no Amor.

É preciso se tornar perfeito por simples obediência, para dar alegria ao Amigo. É então que o Céu nos confia o butim; mas, sobretudo, ele Se torna sensível em nós. Ele derrama em nós o puro licor da vida eterna. Ele nos inflama com um ardor sempre crescente. Essas noções místicas não são conceitos filosóficos; são realidades, substâncias ativas, bálsamos penetrantes. Se o Verbo é a Vida, e se nós O possuímos dentro de nós, nosso único trabalho é o de fazer crescer esse germe precioso, cultivar à nossa volta as inumeráveis centelhas de toda ordem que jorram continuamente do coração do Universo. A morte nos aparecerá tal como ela é: um fantasma; e somente a eventualidade de uma diminuição da Luz em nós nos dará esses temores salutares graças aos quais não paramos de subir rumo aos cimos do Imutável.  


                                                   NOTAS:

* Tradução de Anderson Fortes de Almeida.

** Retirado e traduzido do livro “Les Forces Mystiques et la Conduite de la Vie”, Paris, “Amitiés Spirituelles”, 1977. Pág 151 até 166.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sábado, 11 de março de 2023

OS ESPÍRITOS DESTE MUNDO E O ESPÍRITO SANTO

 

  OS ESPÍRITOS DESTE MUNDO E O ESPÍRITO SANTO *

                                                                                         POR PAUL SEDIR


Pareceria, à primeira vista, que a um místico não devesse interessar o problema dos espíritos; mas, ao se fazer uma reflexão, a utilidade deste estudo torna-se evidente para melhor fixar as ideias e para circunscrever nitidamente os domínios respectivos do ocultismo e do misticismo.

 

Como todos os seres que se extraviaram, nosso tempo procura as coisas raras; não se satisfaz nem com as lições austeras da ciência positiva, nem com os conselhos mais consoladores da Igreja; e, devido a sua inquietude febril, se extravia quase a cada passo. É contra as paixões suscitadas pelo espiritismo, pela magia, pelo magnetismo pessoal que tentamos hoje reagir, retificando nossa caminhada sobre a estrela polar do mundo invisível, sobre o Verbo Jesus.

 

O Invisível é mais vasto que o Visível, milhares de vezes. Nele englobamos comumente todos os seres que o povoam sob a designação de “espíritos”; mas é um termo impróprio, porque a palavra designa gramaticalmente uma entidade imaterial, e as criaturas invisíveis são providas de corpos. O título de Espírito somente convém ao Consolador, à terceira pessoa da Trindade. Os habitantes do “Outro lado”, pelo fato mesmo de que são criados, possuem órgãos materiais. Os deuses possuem corpos, os diabos também; os anjos em missão revestem-se de corpos temporários, como nós vestimos uma capa de viagem. Para me conformar ao costume, chamarei de espírito todo ser imperceptível aos sentidos corporais, desconhecido da consciência ordinária, intangível aos aparelhos de laboratório.



Conforme esse ponto de vista, os habitantes de Marte ou do Sol são para nós espíritos; são, contudo, seres orgânicos, que se alimentam, trabalham, se multiplicam, com um corpo que é pesado em seu próprio planeta. Assim, existem astros formados de uma matéria que acharíamos muito mais pesada que a nossa, se pudéssemos mensurar sua densidade com um padrão de medida universal de peso; esses astros, entretanto, permanecem invisíveis aos melhores dos telescópios. Igualmente há, sobre a terra, raças de homens pouco conhecidos, cujo corpo, bem mais vigoroso que o nosso, bem maior, capaz de atingir uma longevidade patriarcal, não pode ser percebido nem pelos olhos, nem por qualquer instrumento de óptica. Na espessura das rochas, nas areias de certos desertos, nos glaciares do polo, vivem outros homens, diferentes de nós, gigantes, pigmeus, ciclopes, alados como os anjos, ou monstruosos. Eles são reais, mas as ondulações fotogênicas passam a través de seus corpos, cujas moléculas são agrupadas seguindo eixos diferentes; nossos olhos não os vêem, os dos sonâmbulos ordinários tampouco. Mais tarde, a qualidade do fluido luminoso mudará, e os exploradores descobrirão essas criaturas estranhas. Quando elas se manifestam acidentalmente, as tomamos por espíritos.



Além desses aborígines do invisível, além dos defuntos, das imagens, dos reflexos, existem entidades espirituais ligadas a todas as criaturas materiais. Cada ramo de erva tem seu gênio, diz a Cabala, em conformidade com os Pais da Igreja. Os mitos, as lendas populares ilustram essa ideia; O Evangelho a apresenta sob seu aspecto mais alto: “Todas as coisas foram feitas pelo Verbo”, pronuncia o discípulo bem-amado, “e nada do que foi feito, se fez sem Ele”. Toda criatura contém uma centelha do Verbo, da Vida; ora não há vida sem espontaneidade, espontaneidade sem liberdade, liberdade sem individualidade. Absolutamente falando, tudo é um eu, uma inteligência, uma vontade; todo corpo é o envelope de uma alma, instrumento de um espírito.

 

Como acreditar em tais contos de fadas? Só há um meio: observar. Trabalho difícil e delicado. Aquele que recebeu o batismo do Espírito Santo possui o privilégio de uma comunicação permanente com o coração do mundo, sede central do Verbo. Lá, toda criatura se mostra em sua nudez original, em sua forma real. Mas não posso abrir seus olhos interiores e lançar vocês na corrente da Vida cósmica secreta. Seus cérebros, em sua maioria, não resistiriam a esse impacto, a esses tumultos, ao formigamento infinito dessas turbas.

 

Entretanto, anotem isto. Entre os pesquisadores que se ocupam do invisível, há os teóricos e os práticos. Os primeiros são poetas, filósofos, iniciados intelectuais; professam o subjetivismo, ou melhor, consideram as lendas, as recitações miraculosas, as teologias apenas como alegorias, símbolos, descrições metafísicas de meios dinâmicos. Para os práticos, ao contrário, tudo é real e objetivo, quer eles ajam na via da esquerda, como os feiticeiros do campo, os faquires, os mágicos, ou na via da direita, como os místicos. Uma vez mais, os extremos se tocam; a ignorância do selvagem, que discerne um espírito no trovão, no baobá ou no caïmã se une ao conhecimento perfeito do Amigo de Deus, cujo olhar traspassa os véus sob os quais se esconde a forma verdadeira das criaturas.

 

A Igreja acredita igualmente na existência dos espíritos das coisas; algumas de suas fórmulas litúrgicas o demonstram. Quando o sacerdote pronúncia: “Exorciso te, creatura aquae”, é porque há na água um princípio que entende esta palavra, que percebe o sentimento do padre; ou então a liturgia seria apenas literatura. Quando o clérigo abençoa uma colheita, uma casa, um telégrafo, um medicamento (1), é porque há vida nessas coisas, ou então esse apelo às forças divinas seria algo sem sentido, insultando a Providência.  Alguns taumaturgos perceberam o mundo dos espíritos. O admirável Francisco de Assis dizia “meu irmão lobo” e “minha irmã cotovia”; e também “meu irmão fogo, minha irmã cinza, minha irmã pobreza”. E não eram imagens poéticas de seu pensamento; ele conhecia o espírito animador desses seres, pois o fogo, os peixes e as andorinhas obedeciam a seus amáveis comandos.



Nossa inteligência dificilmente concebe que as fadas habitem as fontes, e os caprípedes, os desertos da Etiópia. Entretanto, aqueles que viram criaturas desse gênero não eram todos alucinados; aliás, a alucinação corresponde sempre a alguma coisa real. Toda a dificuldade consiste em mudar nosso ponto de vista. O marinheiro vê ondas, em uma maré; o engenheiro, uma curva dinâmica que ele transforma em equações; o astrólogo descobre as correntes fluídicas. Todos estão com a razão; somente aquele que observa com os olhos do próprio Verbo abraça simultaneamente o princípio e todos os aspectos. Eis o místico.

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Entre esses seres invisíveis, uns são microscópicos, outros imensos. Assim, a prosternação resplandecente do anjo da prece ostenta de uma à outra extremidade do firmamento feixes de estrelas brilhantes; ao passo que nós, quando oramos, entre os bilhões de células que compõem nosso ser, apenas algumas se iluminam. Grande é o medo, no coração do discípulo que viu esse anjo; mas sua alegria permanece inefável e inesquecível.

 

Os fluidos ódicos redescobertos pelo Barão de Reinchenbach não são os espíritos dos quais falamos; os halos ovóides multicolores que percebemos no plano magnético e no plano mental também não são esses espíritos. A entidade intelectual, a tendência moral de uma associação, de um colégio, de um movimento nada mais são do que a mistura de emanações vindas das vitalidades material e espiritual dessa coletividade.

 


Ao contrário, quando, em seus êxtases, Catherine Emmerich, arranca as ervas daninhas de uma vinha imaterial, anunciando, depois de despertar, ser essa vinha a Igreja, e a planta parasita, um prelado indigno, sendo que, pouco tempo após, o prelado nomeado por ela foi destituído de seu cargo, foi o gênio da Igreja que ela havia realmente visto. Quando uma mãe sonha que uma serpente se enrola em torno do pescoço de seu filho e que, no outro dia, o pequeno acorda com uma angina, é o gênio da doença que ela percebeu. Se, após terem orado por um aflito, vocês o virem em sonho receber a visita de um soldado, por exemplo, é o gênio do livramento que apareceu.

 

Alguns dentre os servidores do grande Pastor são colocados assim em relação com certos agentes gigantescos que governam as forças da Natureza. Foi assim que um dia, um dos meus amigos, que certamente não estava em correspondência telegráfica com os sismógrafos dos observatórios, me disse à queima roupa: “Esta noite, a tal hora, haverá um tremor de terra de tal parte à outra; mas ele não será sentido na aldeia onde habita o Sr. X... , porque ele é um bom soldado; combinaremos isto com o dragão” E, de fato, os jornais relataram  os tremores exatamente com a direção  e a interrupção inexplicável que me foram preditas. O que há de curioso nesse relato é a opinião subentendida que toda colina, toda montanha, todo rio, todo lago, até mesmo as profundezas do solo são moradas de numerosos gênios; e que, agindo sobre o gênio, se modificaria o lago ou a colina, exatamente como, quando as paixões mudam, a mímica muda igualmente. Essa opinião é muito difundida na Arábia, na Índia, entre os povos amarelos; mas é muito rara na Europa.


Eu teria várias histórias semelhantes para contar; mas é preciso me ater ao meu programa.

 

Para estudar um pouco mais de perto o espírito das coisas, escolheremos um exemplo que vocês poderão estender a todos os casos análogos.

 

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Eis uma casa. Todo o edifício é o corpo físico de um gênio. As casas comuns de construção moderna possuem também seus gênios. Esses gênios   revestem-se de formas animais, e o verdadeiro vidente entra em comunicação com eles, os educa, os faz agir segundo os seus interesses.

 

Entre parênteses, devo lhes dizer aqui que o que chamo de um verdadeiro vidente não é o médium ou a sonâmbula honesta, que não trapaceiam; mas algo totamente distinto. Os maníacos do psiquismo, desde o momento em que acreditam perceber em alguém sinais de desequilíbrio nervoso, se precipitam para desenvolver esse tema; mas como ignoram tudo sobre a constituição real do homem, as ligações entre o espírito e o corpo, caminham cegamente; e o desenvolvimento que obtêm são apenas mais desequilíbrios. A presunção desses experimentadores que julgam fazer algo útil seria risível, se não fosse digna de dó. O verdadeiro vidente é antes e acima de tudo um discípulo do Evangelho; é somente por acréscimo que exerce uma faculdade excepcional.

 

Retomo a seguir meu exemplo.

 

O que se passa no “outro lado” durante a construção de um edifício?  Primeiramente, o futuro proprietário recebe a forma espiritual desse edifício; esta visita ocorre no inconsciente.  Se o espírito desse homem se interessa por esse clichê, o acolhe, o nutre, a imagem pressiona o cérebro e entra no campo da consciência; a vontade opta pela aceitação ou recusa. Os clichês não podem se realizar sozinhos; é preciso a colaboração dos homens; mas a matéria tampouco pode evoluir sozinha; ela precisa das armaduras fornecidas pelos clichês.

 

Esses últimos, antes de se tornarem intuições, desejos vagos, projetos, planos, trabalhos e criações físicas, tiveram, antes, de coordenar em seu lugar próprio todos os tipos de correntes atrativas para religar uns aos outros os seres dos quais esperam sua materialização.

 

Um tipo espiritual cresce ou definha conforme os homens ou os lugares que ele toca lhe forneçam ou lhe recusem alimentos. Eis, por exemplo, um clichê de roubo passando pelo meu espírito. Antes não pensava em furtar; a cobiça me vem por causa de uma ocasião qualquer. Se a satifaço, as forças físicas e mentais que me servem para efetuar o furto serão absorvidas pelo clichê, o qual se distanciará em seguida de meu espírito um pouco mais vigoroso do que entrou; se resisto, após algumas tentativas o clichê irá embora um pouco mais fraco.

 

Esses contatos dos clichês com o mundo físico formam a trama de nossas existências. Percebemos aqui como, na realidade, podem ser graves decisões que o julgamento racional sozinho teria acreditado ser pouco importante.

 

O local onde uma casa deve ser construída é designado desde o nascimento do continente do qual ele faz parte. Muitos anos antes do escavador pegar sua picareta, correntes fluídicas se juntam nesse lugar. Quanto mais deve durar o edifício, mais remota é sua preparação. Proprietário, arquiteto, operários, as pedras, as vigas, o cimento, o metal, tudo enfim que concorre para este empreendimento, em seus mínimos detalhes, é fixado anteriormente nos arquivos da terra, segundo as leis mais imparciais.

 

Nada acontece, pois, a uma pessoa que não tenha sido chamado ou escolhido antecipadamente. O desabamento, os defeitos, os imprevistos, o incêndio futuro, os procedimentos possíveis, tudo isso é atraído magneticamente pelo clichê primitivo e pelos justos destinos dos proprietários, dos construtores e dos locatários.

 

Isto não exclui a má-fé, por exemplo, dos contratantes. Um empresário desleal somente é levado até mim e me prejudica porque mereço ser enganado; mas ele permanecerá responsável por sua fraude. Se ele resiste à sua avareza, age duplamente bem, para ele e para mim. Se reconheço a legitimidade espiritual desse roubo, me recusando a processar o empresário, pago a mim mesmo uma dívida, melhoro o meu porvir, o de minha casa, e mesmo o do empresário indelicado, porque deposito, por meio de minha renúncia, e sem o saber, o germe do remorso no espírito desse homem.

 

Há lugares nefastos, casas onde certa doença terrível parece ter escolhido seu domicílio. Frequentemente, vamos nelas nos instalar por ignorância; e essa ignorância é desejada por Deus para não escaparmos de nosso justo destino. Entretanto, não devemos afrontar o perigo com bravata: “Eu nada temo; sou mais inteligente que qualquer um; tenho uma saúde de ferro”. É preciso dizer: “Aceito morar nesta casa apesar de seus inconvenientes, porque o Cristo nunca teve tanto; posso muito bem me impor este incômodo, uma vez que um dos meus irmãos desconhecidos se beneficiará com o local mais cômodo que eu lhe deixar, e porque estou certo de ser ajudado.” Eis a linguagem de um soldado do Céu.


Observem a expressão singular desta frase do Evangelho: “Ao entrar na casa, saúde-a, dizendo: Que a paz esteja sobre esta casa; e, se esta casa for digna dessa paz, a paz virá sobre ela e, se ela não for digna dessa paz, que a paz volte para você”. De fato, uma casa pode, como toda criatura, desejar a Luz ou as Trevas; a discórdia acompanha estas, a paz escolta aquela.



O gênio de um edifício agrupa em torno dele outros gênios; cada peça possui um; cada parte da peça, cada detalhe da porta ou da janela, cada móvel, cada objeto somente subsistem pela ação coesiva de um espírito. 

 

A árvore da floresta, em sua estatura plena, é o corpo de um gênio. Quando o machado a joga por terra, cada uma de suas partes, cada prancha, cada pedaço de lenha torna-se o habitat de um gênio de ordem diferente, e o carpinteiro, o marceneiro, que dão a essas pranchas uma forma útil e um uso prático, evocam inconscientemente um gênio novo, semissilvestre e semi-humano, que habitará essa madeira, que se tornou mesa, cadeira ou armário, e dirigirá a existência dela em uma certa medida. 

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Cada homem aparece no invisível como o centro de uma falange mais ou menos numerosa. Há servidores para facilitar suas necessidades, e deuses para o benefício dos quais ele trabalha; os espíritos de seus ancestrais estão lá, os de sua aldeia, de sua pátria, de sua raça e de sua religião; guias o acompanham no exercício de seu ofício, no prosseguimento de seus empreendimentos, na procura de seu ideal; viajantes chegam até ele, atraídos por suas virtudes, seus vícios, ou suas preocupações. Ao seu lado estão enfim, dia e noite, um representante da Luz, o anjo guardião, e um representante das Trevas, o mau anjo.


Ademais, o deus que cada um serve – deus do dinheiro, deus da ciência, deus da arte – envia para seu fiel verdadeiras cortes de auxiliares e de colaboradores. Certos contos das Mil e uma Noites explicam isso muito bem. Um conquistador, Napoleão, se querem um exemplo, enviado à Terra como o cirurgião é enviado ao doente, somente fanatiza seus soldados e amarra a Vitória a seu cavalo porque os países que ele atravessa são povoados de homens e espíritos vindos em linha direta do mundo da guerra e enviados pelo deus das batalhas. 

 

Um concurso análogo é concedido ao grande filósofo, ao fundador de religião, a todo herói. Entretanto, é preciso observar aqui uma diferença essencial nas atitudes interiores desses missionários, atitudes que impõem a sua obra uma qualidade de Luz ou de Trevas – porque as Trevas possuem também seus enviados. Se o homem acredita em sua própria força e somente se apoia em si mesmo, fará de seus auxiliares invisíveis escravos, obedientes pelo medo e sempre prontos a se revoltarem. Se o homem se avalia em seu justo valor, isto é, como um puro nada, e somente se apóia no Céu, ele fará de seus ajudantes servidores voluntários, amigos sempre prontos a se sacrificar por sua obra. A qualidade de nossos desejos faz a qualidade de nosso entorno.

 

Podemos ver no tipo do adepto e no do místico uma ilustração muito clara destas atitudes interiores. O primeiro, pelos treinamentos do sistema nervoso, do mental e da vontade, pelos êxtases onde ele mergulha por conta própria força uma gama de espíritos de toda ordem a lhe servirem, e os incorpora, de alguma maneira. O Amigo de Deus, ao contrário, não deseja tornar-se um atleta espiritual, mas somente cumprir com perfeição a Lei na pequena esfera onde a Providência o colocou. Os servidores que ele possui lhe são enviados e, como eles vêm do Céu, seu devotamento é espontâneo, livre e total. 

 

A história da árvore sob a qual São Martinho de Tours tinha o costume de orar e que, serrada subrepticiamente por um criminoso, caiu do lado oposto ao corte para não esmagar o santo, não é uma lenda; o espírito desse carvalho teria reconhecido o espírito do bispo piedoso. A taça de veneno se quebrando entre as mãos de São Bento mostra também a inteligência das coisas, e sua pequena liberdade. Numerosos fatos análogos mostram como o Céu protege aqueles que têm Nele uma tranquila e corajosa confiança.

 

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Que instruções práticas podemos retirar desses quadros feitos apressadamente?

 

A sabedoria ordena não procurar relações com os invisíveis, sob nenhum pretexto, até mesmo recusar essas relações se os espíritos se manifestarem espontaneamente. Mas estamos longe da sabedoria; do contrário não haveria, por parte do mundo, tantos caçadores de fenômenos psíquicos.

 

O espiritismo, mesmo quando fornece certezas experimentais, é um engodo. Nunca uma invocação ajudou um defunto. As práticas espíritas negam a bondade do Pai, pois é sempre a falta de confiança que nos leva a elas; elas abrem uma porta – portas – a todo os desequilíbrios, fisiológicos e psíquicos; elas engendram apenas a discórdia no reino dos mortos; elas nos tornam cegos à Luz verdadeira.

 

A magia é ainda muito mais perniciosa. Ela pode operar grandes maravilhas, algumas vezes mesmos coisas grandes aparentemente; mas ela é sempre uma revolta contra a Lei, uma vez que ela comanda, usurpa e pilha, e uma vez que para ela todo homem, salvo o homem livre, só deve servir, se submeter e doar. A magia branca, esta que parece servir somente a boas causas, é mais perigosa do que a magia negra. O feiticeiro, de fato, não pode fazer grandes coisas; quando ele tiver matado um rebanho, homens, ou secado colheitas, serão apenas danos físicos. Mas o mago, o hierofante dos livros de ocultismo, o ser que se julga muito sábio, muito puro, muito elevado, que se diz um homem livre porque reduziu à escravização quantidades de gênios, porque inclusive – certos autores não encontram louvores bastantes para um tal crime - ele não teme tomar por meios secretos os corpos de jovens robustos para prolongar durante séculos sua própria existência terrestre: um tal homem é bem mais nefasto, porque, pela aparente beleza de sua vida, leva os outros para o orgulho, para o egoísmo espiritual, para a imobilidade, isto é, para a segunda morte.

 

Não procurem nunca agir sobre o espírito das coisas; não aceitem isto que Eliphas Levy chama a transmissão da varinha mágica. Não pode o Pai não lhes dar tudo? E não dá conforme vocês demonstrem ter a força e a sabedoria necessárias ao uso de Seus dons?

 

Desejam conhecer as coisas secretas? Comecem por manter sob um segredo inviolável as faltas do próximo e o que ele lhes confiou. Desejam realizar milagres? Comecem por se tornarem dignos dos milagres que, vinte vezes por dia, a Providência realiza em seu favor e que vocês não se dignam a notar. Desejam que os acontecimentos lhes obedeçam? Demonstrem-lhes, renunciando às vantagens pessoais de suas aflições, que eles não poderão jamais lhes obrigar a nada. Obedecer ao Pai, fazer o bem, combater seus próprios vícios; eis a receita mais justa, mais sadia, mais ativa.

 

Sem ter de recorrer aos artifícios das ciências ocultas e mesmo fora dos ritos litúrgicos, a simples qualidade, boa ou má, de nossa vida moral é suficiente para beneficiar ou prejudicar todo o meio onde nós evoluímos. A habitação será pura se o habitante for puro. Pode ser que os cérebros ávidos do maravilhoso julguem esta teoria muito simples; entretanto a simplicidade é o signo da verdade, o atributo da potência, o selo da Luz.

 

O conhecimento desses invisíveis nos é interditado porque comportaria um poder imediato sobre a matéria, por intermédio deles. Nos faltaria, desse modo, um dos objetivos da existência: evoluir o mundo material pelo esforço material. A evolução da matéria obtida por dinamismos espirituais seria muito brusca e, portanto, sem frutos.

 

As teorias que indico, por mais pueris que possam parecer, lhes trarão novos deveres; em contrapartida, elas só proporcionarão novos direitos mais tarde. Elas fornecem uma explicação nova e ao mesmo tempo muito antiga; outrora, frequentemente elas deram coragem aos humanos desanimados; desejo que elas ainda lhes concedam o mesmo serviço.

 

 

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O homem exerce, portanto, sobre os objetos do meio em que vive, uma influência real. Uma cadeira arremessada com furor armazena a cólera; os utensílios de uma dona de casa avara propagarão a avareza em seus futuros proprietários. O mesmo ocorre com os atos do homem bom, do ponto de vista dos fluidos e sobretudo do ponto de vista dos espíritos. Veem agora como é inútil se preocupar com as mil precauções inscritas nas Leis de Moisés ou de Manu? Comer em um prato já anteriormente usado, vestir vestimentas que outros já vestiram, alimentar-se de carnes ditas impuras, tocar cadáveres, isso suja, talvez, como pretendem os Orientais, o corpo ou a aura; mas não mancha nem o coração, nem o espírito. Os hierofantes antigos purificavam por fora; Jesus purifica por dentro. Uma mesa totalmente nova pode também ter sido manchada pela preguiça do operário, pela cupidez do mercador, pela malícia da árvore que forneceu os galhos. Em todo caso, o rito por si mesmo só purifica o plano das vibrações.  Ao contrário, ainda que um objeto tivesse servido para perpetrar o crime mais hediondo, se o empregarmos para fazer um ato de verdadeira caridade, isso será, para seu espírito, uma purificação perfeita.


A caridade, único dever do indivíduo para com o resto do mundo, é inumerável em suas aplicações. Não zombem de coisa alguma: isso seria oferecer um abrigo ao espírito da difamação. Não quebrem os galhos nas florestas, não matem os insetos, não destruam nada sem motivos relevantes. São sábios à sua maneira aqueles que, nos vastos celeiros das casas do interior, acumulam todas as velharias fora de uso; esses antigos servidores repousam juntos, como trabalharam juntos; eles não sofrem com a ingratidão humana; ainda prestam serviços a seus mestres, mas serviços espirituais em vez de materiais. Eles atam à casa que os abriga as imagens do passado, os laços tradicionais, as linhagens dos ancestrais e dos descendentes.



Não queimem esses velhos testemunhos; não os dispersem, salvo para socorrer algum infeliz; deixem-nos retornar docemente à poeira original.

 

É por caridade que é preciso guardar os presentes incômodos ou ridículos; hospeda-se assim o que um outro não queria.  É por caridade que não se deve destruir os velhos retratos, nem pela chama, nem pela tesoura; eles guardam sempre um pouco da vida daqueles que eles representam, mesmo se a pessoa já tiver morrido. Enterrem as fotografias desbotadas; a terra é maternal. Por caridade não soprem a lamparina ou a vela; evitem a morte súbita aos pequenos seres que fabricam a chama; uma vez que o seu sopro difunde em vocês a vida, não o obriguem a causar a morte fora. Por caridade não consertem indefinidamente as velhas roupas e as velhas vestimentas, se vocês podem comprar novos; a Lei é que tudo circule e que tudo se renove.

 

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Não economizem nenhum de seus humildes esforços, desses obscuros sacrifícios. Chegará um tempo em que vocês encontrarão, em alguma das brancas moradas do Pai, todos esses humildes gênios do lar, todos esses modestos servidores; e diante de seu olhar emocionado passará, do fundo dos séculos e dos espaços, a cena familiar onde vocês tiveram um gesto de doçura com as testemunhas mudas, ainda que vivas, de sua pequena existência terrestre.

 

Todas as preces que vocês tiverem pronunciado, no silêncio noturno e na solidão de seu quarto fechado, os objetos em torno de vocês as ouviram, delas se alimentaram e guardaram-nas na lembrança. As coisas possuem uma memória; a psicometria o prova. Saibam que seus livros, seus bibelôs, as árvores, em seu jardim ou no campo, sentem sua presença, compreendem um pouco do que se passa em vocês e esperam de vocês uma luz e uma direção.

 

Deem-lhes essa luz, não procurando esclarecê-los por vocês mesmos; sua luz própria é bem pouca coisa. Mas se esforcem por reter em seu coração a própria Luz do Verbo e serão para todos esses seres um guia seguro. Para reter Jesus em vocês, sabem como devem fazer.

 

Apliquemo-nos às tarefas cotidianas, aos deveres imediatos, aos trabalhos que podemos compreender; e deixemos as tarefas distantes, abstratas, muito difíceis àqueles que acreditam poder conduzi-las com êxito.


 

(1) Cf. Rituele Romanum.

 

* Retirado e traduzido do livro de Paul Sédir: Les forces mystiques et la conduite de la vie” ,  Paris, Amitiés  Spirituelles, 1977, Cap. 8,  págs 119 à 132.

 

Tradução : Pseudo-Sedir

Revisão : Anderson Fortes  Almeida